sábado, 15 de fevereiro de 2020
A Noite da Extorsão
Ela nunca esquecera do calor daquela noite. Ou do sufocante cheiro da carne queimada do povo que ainda nem era seu.
O céu noturno era clareado pelas chamas e nunca ouvira tanto clamor a ele e seus deuses. Pedidos de misericórdia eram escutados daqueles que não renegavam o seu Rei. Mas não eram suficientes para parar aquilo. Nenhuma palavra era.
Enquanto sua mãozinha era puxada, sentiu seus pés descalços doerem, mas não teve tempo de reclamar. Não quando sua atenção, em meio àquela correria, era tomada pelas cenas de horror.
Um homem com sua noiva nos braços, empalada.
Uma mãe de joelhos, usando todo seu corpo para proteger seu bebê em seus braços, enquanto o cavaleiro se portava à sua frente sem clemência.
Uma mulher, na sacada do terceiro andar do castelo, parecendo hesitar entre a morte pelo fogo e a morte pela queda.
— Seja forte, Princesa — ordenou o homem que lhe puxava. A rigidez daquela voz, contudo, não lhe assustou, como tantas vezes antes. Sentiu vontade de parar e agradecer por todas as vezes que lhe passaram sabedoria, mas tudo o que conseguiu foi tossir seco, e sentiu sua mão ser apertada mais forte enquanto corriam pelas ruas.
O ex-ladino, eternamente grato àquela família, conhecia a cidade como a palma de sua mão. Ia percorrendo cada beco, furtivo. Como sua última missão, protegeria àquela criança. Mesmo sabendo que nem sua morte retribuiria tudo o que fizeram por si.
— Vincent! Graças aos céus! — a voz feminina, fraca, agradeceu após tanto esperar, ao ver ambos chegarem ao ponto de encontro.
No mesmo instante, a mãozinha soltou-se do ladino, e correu até ela, buscando seu abraço.
— Mãe, nós temos que lutar! — pediu chorosa. — Todos aqueles que amamos... — fungou — Estão todos morrendo!
Os gritos de agonia e ódio, incessantes no fundo, aumentavam. Sentiu novamente o vento quente em sua pele, e nem se importou em tirar as cinzas de sua manta.
— Minha querida — a mão gentil ajeitou seus cachos bagunçados, tirando-os da frente do seu rosto. – Sentimos muito. Não temos como. Já não há mais tempo.
A garotinha sentiu uma fúria crescer dentro de si, enquanto seu rosto esquentava.
— Eles estão profanando o nome de nossa família! Somos fortes, temos que revidar!
— Remora, Vincent! — uma voz mais grossa, após terminar de arrumar o cavalo, se voltou a ela lhe ignorando. — Não temos mais tempo, eles estão se aproximando! Tragam-na!
Sentiu Vincent lhe levantando e lhe colocando no cavalo, enquanto se debatia. Ele subiu logo depois.
— Vamos fugir?! Sequer temos cavalos suficientes! — contestou.
— Azura — seu pai pronunciou seu nome, fazendo-lhe se calar.
— Preciso que fique atenta e nos escute — se aproximou mais do cavalo, e tocou seu rosto. — Nós não temos forças para combatê-los. Suas magias são sujas, e nunca deveriam ser usadas por ninguém. Apenas uma única coisa poderá fazer pará-los.
Azura desviou os olhos do pai, e cerrou os punhos. Não era burra. Sabia o que ele queria dizer com aquilo. Apenas a morte dos reis acabaria com a matança dos rebeldes.
Mesmo assim, seus lábios começaram a tremer.
— Por favor... Estou com medo... — pediu chorosa, sabendo que estava sendo egoísta, e seu rosto começou a ser molhado pelas lágrimas.
— Nós lhe amamos, Azura — sua mãe se juntou ao lado do seu pai. — Você deve ser forte. Esqueça seu sobrenome. Esqueça que um dia viveu aqui.
Inconformada, o choro da criança aumentou, e garantiu entre soluços:
— Eu vou vingar vocês! Vou vingar todos que morreram hoje! Eu prometo!
Sua mãe lhe acariciou o rosto gentil, uma última vez. Triste, a menina buscou memorizar a textura de seus dedos.
— Não viva com vingança em seu coração, minha criança. Se voltar, que seja pelos nosso povo, que está sendo enganado. Que assim como seu nome, você traga a paz de um céu azul — sua mão se afastou. — Agora vão. Garanta que ela chegue segura, Vincent!
A menina tentou discutir, mas foi interrompida:
— Sim, minha Rainha! — o chicotear foi ouvido contra a pele do cavalo, que relinchou e se pôs a correr pela trilha entre as árvores.
Azura olhou uma última vez para trás, vendo seus pais e seu castelo em chamas. Os gritos iam ficando mais baixos à medida que se afastavam.
Enquanto continuava a chorar, seu coração não carregava mais dúvidas. Sabia o que tinha que fazer.
Algo formigou em sua barriga, e lhe fez sentir um poder percorrer suas veias. A menina gostou do que sentiu.
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